No momento presente, em que somos diariamente bombardeados por todo tipo de informação sobre a Covid 19 – desde as de ordem científica, econômica, política ou mesmo as espirituais -, cá estou eu, absorvendo o que pede a minha natureza.
Obrigatoriamente limitar-me a um único espaço físico, a minha casa, tem significado para mim um universo de sensações – desde a insegurança, a preocupação, mas também a de algum tipo de conforto pessoal e psicológico.
Não apenas um súbito e necessário distanciamento que me impeça de abraçar a família e amigos, fato, mas a intuição da proximidade de uma força maior, impulsionando-me a decidir em correr ou ficar. Uma escolha.
Sim, correr do desgaste que tem se arrastado pelo tempo, o que vale para a maioria das pessoas, ou nos percebermos frente a frente, com mais ternura e compreensão.
Sinais em nosso favor são emitidos com frequência – uma constelação de possibilidades. Mas unicamente se pararmos e nos percebermos diante de nossas vidas – esculpidas por nós próprios.
Inspirada por algum propósito, ainda que desconhecido, ouço o lamento da nossa casa -mãe, o planeta, que clama por atenção, por nosso abraço.
Por outro ângulo, o da rotina – limpeza frequente da casa, cuidados com as cachorras, a lavação de roupas – cada vez maior o volume para passar -, a rotina do almoço, do lanche; esfrego, varro, revejo cantinhos mais sujos, molhos as plantas, faço minha cama. Arrasto móveis, porque desejo mudar o que já vejo há um bom tempo.
E a demanda continua aumentando. As listas só crescem – risco, acrescento, rasgo. O dia passa a ser pequeno para tanta exigência que eu própria me faço, necessariamente.
Ando com a coluna sofrida, a nuca travada pelo excesso de foco no celular, que deveria unir as pessoas, como agora, e não as distanciar.
Tenho as mãos mais grossas, as unhas lascam, os fios de cabelo brancos me revelam ainda mais, permitindo buscar-me em algum tempo do passado.
Tenho descartado coisas acumuladas, seleciono objetos, enfim, seleciono-me.
Sim, existe o cansaço físico, mas imediatamente me prontifico, e em acordo comigo mesma, a espichar meu corpo – simples.
Paro e olho cada quarto vazio do apartamento – planejo uma nova disposição, imagino as pessoas que ainda podem ocupá-los. Invisíveis ou não.
Não me afasto dos anseios mais antigos, reinicio atividades há muito planejadas, mas que acabaram não saindo do papel – por circunstâncias que, por direito e por respeito a mim, concedo-me o perdão.
E, assim, elasticamente seguem animados os meus dias – jornais e filmes na TV, ouço música, toco algum instrumento, leio, rezo ao amanhecer – terminados em exaustão. Mas satisfeita comigo mesma, gosto de minha companhia. Até quando, não sei.
Não me sinto tão só como imaginei, ainda que guarde numa caixinha a lacuna da presença – de filhas e netos, principalmente – todos nela protegidos e resguardados. Com paciência, confio na sabedoria do tempo.
Às vezes puxo o ar com mais força e me dou conta de que não estou imune a esporádicos flashes de tristeza, preocupação ou insegurança. Mas logo, logo me entrego à vida do dia, por sinal, ensolarado. A alegria vem por tabela. Sentimentos vêm e novamente partem para onde devem estar – em outra morada do meu coração.
Chego a agradecer, reafirmando que ciclicamente nada é para sempre, – situações boas, ou não -, e sempre foi assim, desde os primórdios.
Netos que, mesmo compreendendo a ameaça do bichinho invisível, o pior deles, a cada dia só fazem dilatar a criatividade. Surpreendidos com a permanência tão longa dos pais em casa – saboreiam, pedacinho por pedacinho, desse doce tão imprevisível e encantado. Tão logo tudo passe, já terão vivenciado – isso é o que importa.
Pego-me falando sozinha – comigo, com as cachorras, com a casa. Mas também tenho rido bastante.
Não, não estou louca. Apenas mais conectada a um velho e novo mundo de múltiplas moradas e companhias. O mundo do aqui e agora – o da varanda, onde mais fico; de cada cômodo da casa, o de onde agora escrevo. O mundo dos sonhos, dos sentimentos e pensamentos – confortáveis ou não.
Lembro os meus pais – cada um em sua ampla e solitária biblioteca com literatura rara, sempre debruçados sobre seus livros. Assim, se sentiam bem.
Nesse momento de reclusão, sinto-os mais presentes.
O pai, advogado muito renomado, querido e respeitado, era excessivamente rodeado por pessoas, fato que muitas vezes o aborrecia. Isso me faz usufruir ainda mais do tempo de estar só.
Minha mãe, escritora das madrugadas e cantora, costumava dizer que os objetos têm vida. E eu não me sinto diferente dela. Em pensamento, imagino a história e procedência deles.
Na minha casa, batizei uma cristaleira antiga, de museu. Nela moram os mais diversos seres – garrafas coloridas, tigelas e pratos antigos, bonecos instigantes de feiras de antiguidade, lâmpada, telefone antigo, relógios, luvas de casamento da vó Herondina; restos da coroa de casamento da minha mãe, carros e motos de louça e metal, copos, caixinhas, lembranças de viagens internacionais, objetos de arte, presentes inesquecíveis, muitos em forma de imagens.
Percebo nesses objetos a beleza, o tempo. Comunico-me com eles porque me olham.
Volto à minha mãe Irene – releio em pensamento as palavras, criadas por ela, eternizadas na lembrança de seu falecimento – “Não há ausência, porque a ausência é a distância e a distância não nos separa”.
Beth Neves – BHte – 2 de abril de 2020